Com 8 dias disponíveis durante o Carnaval de 2019, resolvemos levar meu filho, João Pedro (com 12 anos à época) para sua primeira incursão às gélidas montanhas dos Andes.
Sim, o tempo era extremamente curto. Viajaríamos do Brasil ao Chile, no dia 2 de março, com retorno agendado para o dia 11 do mesmo mês. Ou seja, descontando os dias de viagem, seriam meros 8 dias úteis para a jornada.
Nossa opção pelo Chile se deu por diversos motivos, sendo os principais, o custo da viagem (a passagem ao Chile em geral é mais em conta do que outros países andinos), a proximidade das montanhas com a cidade de Santiago e meu conhecimento prévio, junto à Laura, de algumas áreas que gostaríamos de visitar (embora o objetivo principal - o Cerro Plomo - fosse completamente desconhecido para ambos).
Mal chegamos à Santiago (tarde da noite), já começamos nossa tradicional correria para conseguirmos um hostel. Nos hospedamos no Hostal Casa Aborigen, no bairro Providência, sem dúvidas, a melhor localidade para se hospedar em Santiago, pela proximidade com o comércio, pontos turísticos, restaurantes e transportes. O hostel em si não foi tão maravilhoso, sobretudo pelo atendimento que foi muito lento e confuso. Mas estávamos tão cansados da viagem, que ficamos felizes por termos uma cama para "capotar", além do valor ser bem atrativo.
No dia seguinte, fomos em busca de uma locadora de automóveis. Em nossa última viagem ao Chile, fizemos tudo de ônibus e metrô, mas com o pouco tempo que teríamos, optamos por gastar um pouco mais, mas ter uma mobilidade aprimorada. Foi a decisão mais acertada de toda viagem! Como não havíamos feito reservas e tratava-se de um domingo, tivemos certa dificuldade em conseguir algo em conta, mas finalmente, na locadora Chilean Rent a Car, a cerca de 6 quadras do nosso hostel, alugamos um Renaut Symbol, que, com jeitinho, conseguiria carregar nós três e todo nosso equipamento.
Imediatamente após alugarmos o carro, já rumamos para nosso primeiro objetivo: Baños Morales. A uma altitude de 1800 metros, trata-se de um pequeno povoado cercado por colinas de cor ocre, localizado na confluência dos rios Morales e Volcán, a pouco menos de 100Km da capital, vencidos em pouco mais de duas horas de carro. Sua principal atração turística são as águas termais, além de ser um porto de entrada para o Monumento Natural El Morado, uma das áreas protegidas mais visitadas em todo o Chile. Ao fundo do vale repousa o imponente vulcão San José, com 5.856m de altitude, montanha que tentei com a Laura em março de 2017. Nesta região funciona também uma mineradora de gesso, o que torna parte do cenário bem desagradável, pela alta degradação que causa.
Por lá, reencontramos o Jorge, dono de um restaurante e hostel chamado Los Chicos Malos. Ótimo lugar para comer pizza e tomar cerveja. Jorge foi uma das pessoas que mais nos ajudou em 2017 e de forma calorosa ainda se recordava da nossa jornada, sendo muito amável e cortês, nos recebendo inclusive com dois latões de cerveja, por sua conta! Ainda fez mais: assim como na última vez, nos indicou um bom local para passarmos a noite acampados, sem precisarmos arcar com mais gastos. Um gesto incrível, vindo de um dono de hostel.
A noite começou bem tranquila, a ponto de optarmos bivacar ao lado do carro (eu e Laura), enquanto que o João passaria a noite no conforto do banco traseiro. Nossos poderosos sacos de dormir para -40° nos conferiram o conforto suficiente nas primeiras horas de sono. Mas ao passar do tempo, cavalos selvagens passavam perigosamente próximos... em um determinado momento, senti uma coisa gelada se esgueirando para dentro do meu saco de dormir, passando pelas minhas costas... dei um pulo com o susto, achando ser uma cobra. No final, descobri ser "apenas" um enorme sapo em busca de mais conforto. Para fechar a noite, já por volta das 4h da manhã, começou uma fina chuva, fazendo com que a Laura fosse para dentro do carro, enquanto que eu mantive o bivaque, enrolado na lona, para evitar que o saco de dormir se molhasse. Ufa! Noite longa, mas por incrível que pareça, muito agradável!
O terceiro dia no Chile seria de escaladas. De fato, arrumamos todo o material e fomos a uma mina abandonada, onde escalamos em 2017. Mas não animamos muito e ficamos apenas curtindo a vista, explorando a mina e caçando fósseis nos "acarreos" (cascalhos característicos de alta montanha). Decidimos voltar à Santiago neste mesmo dia, passando antes pela famosa represa chamada Embalse el Yeso (ou "Reservatório de Gesso"), que, pela época, estava totalmente desprovida de neve.
Ao retornarmos, decidimos trocar de hostel, nos hospedando no Hostal Providência, também localizado no bairro Providência, mas com acomodações melhores e boa infraestrutura, além do valor atrativo.
Pouco foi o tempo para descanso. No dia seguinte acordamos cedo e fomos ao shopping para comprar mantimentos e alguns equipamentos. Por incrível que pareça, esta é a parte mais trabalhosa e chata para nós (rs...). Conseguimos finalmente, por volta das 17h, pegar estrada para nosso novo objetivo: O Valle Nevado, onde chegamos às 20:30h, com as últimas luzes do dia (escurece bem tarde nesta época, no Chile). Pouco durou a alegria. Descobrimos que não havia lugar para dormirmos, nem em hostel, nem acampados, haja vista que veículos só podem adentrar a região antes das 16h. Voltar pela sinuosa estrada de mais de 3 horas estava fora de cogitação. Assim sendo, eligimos um espaçoso recuo à beira da estrada, a 2.800m de altitude, para passarmos a noite. Desta vez, todos os três dentro do carro.
Valle Nevado é o maior centro de ski Hemisfério Sul, com uma superfície onde é possível esquiar por 900 hectares, e o mais moderno do Chile. Encontra-se localizado no meio da Cordillera de los Andes a 3025 metros de altitude. Entretanto, durante os meses mais quentes do ano, fica totalmente desprovido de neve e a maioria esmagadora dos serviços fica suspensa. A presença de pessoas se limita a poucos funcionários de manutenção das pistas de ski, guardas e grupos de turistas. Entretanto, é durante a época "quente" que a região passa a ser visitada pelos montanhistas, em busca das belas montanhas existentes na região. A principal delas, o Cerro Plomo, com 5.424m de altitude, é uma das mais procuradas, sendo inclusive o nosso objetivo.
Mas para variar, nossos problemas começaram a surgir. Estávamos com equipamento e mantimentos para 5 dias na montanha, além de não querermos que o João carregasse muito peso, pois tratava-se de sua primeira alta montanha. Com isso, decidimos contratar uma mula para levar nossa bagagem até o acampamento Federación, a 4.150m de altitude. Entretanto, não estávamos conseguindo contatar nenhum arriero (donos das mulas) para o serviço. Quando conseguimos, já passava do meio dia e as bagagens seriam coletadas apenas por volta das 15h. Pior: descobrimos que não poderíamos passar com nosso carro à partir do resort, pois apenas carros 4x4 estavam permitidos para o fazer. Isso representava um adicional de 6 quilômetros e meio, totalizando então, 16 quilômetros em um único dia, saindo de 3 mil metros e indo a uma altitude de 4.100m. O ganho de altitude total (afinal, há muitas subidas e descidas no percurso) fica na casa dos 2 mil metros. Ou seja, sem este transporte inicial, o dia é realmente longo e exaustivo.
Outro agravante foi termos pouco tempo. Em geral, os montanhistas caminham no primeiro dia até uma área chama "Piedra Numerada", a 3.370m. Apenas no segundo dia vão à Federación, a 4.100m. Isso, além de não exaurir as pessoas, proporciona uma aclimatação mais branda.
De todo modo, não tínhamos escolha: nossas roupas, agasalhos, barraca, sacos de dormir e demais itens estavam na mula e só seriam deixados no local combinado, nos obrigando a cumprir um longo dia de exercício. A caminhada do resort até a entrada da trilha é relativamente tranquila, na maior parte, em uma estrada de terra. Mas "começar" a trilha já tendo percorrido quase 7 quilômetros e estando horas atrasado (começamos a caminhar às 15:20h e chegamos na entrada da trilha às 17:20h) foi um tanto quanto desanimador. Tentamos manter o ânimo o mais elevado possível, dando um "tiro" até "Piedra Numerada", onde chegamos às 19h.
Deste ponto em diante, a trilha ganha bastante verticalidade e fica mais irregular. E o nosso problema mais imediato foi o fato da luz do dia estar se esvaindo. Mesmo com a luz das lanternas, o caminho fica trabalhoso, além do frio que teimava em aumentar a cada minuto. Como nossos agasalhos haviam sido embarcados na mula, estávamos apenas com nossos anoraques e luvas leves. Por isso, tentamos manter um ritmo constante, evitando qualquer parada. A cada um minuto que parávamos, o corpo esfriava numa velocidade enorme, causando tremedeiras sinistras.
Eis que, passados os 16 quilômetros e sete horas, exatamente às 22:20h chegamos no local conhecido como Federación. Laura estava com uma dor excruciante no joelho. João Pedro estava exaurido e com frio. Neste momento, achei nossas mochilas e rapidamente comecei os trabalhos. Cacei agasalhos de pena de ganso para ambos, retirei os sacos de dormir, separei os fogareiros e peguei as barracas para armá-las. Mas com tanto azar ao longo do dia, algo finalmente nos surpreendeu positivamente: neste local há um pequeno refúgio, feito de metal, com espaço para três pessoas espremidas. Apesar de pequeno, desconfortável e em estado duvidoso, foi como se tivéssemos encontrado uma mansão luxuosa. Em pouco tempo estávamos os três devidamente abrigados do vento e já no conforto de nossos sacos de dormir. João e Laura apagaram em instantes, enquanto eu ainda arrumava algumas coisas. Dormimos profundamente até as 10h da manhã do dia seguinte.
Por incrível que pareça, acordamos os três nos sentindo muito bem, fortes e confiantes. Minha maior preocupação era com o João, mas contra todas as minhas expectativas, ele estava sorridente, animado e muito feliz por estar ali! Deixei-o bem confortável para escolher prosseguir ou retornar, mas sem titubear, disse-me que queria tentar subir mais. E assim o fizemos.
Após um café reforçado, iniciamos nosso percurso às 13:30h, desde "Federación" (4.100m) até outro ponto propício para acampamento chamado "Refúgio Dagostini", uma plataforma relativamente plana, incrustada a 4.600 metros de altitude na crista sudeste da montanha. Neste ponto há também um pequeno refúgio de metal, em pior estado que o anterior, mas que pode ser usado como refúgio, em caso de emergência ou para quem não deseja carregar barracas. O perigo é contar com isso e encontrá-lo cheio. Por isso, subimos carregando todo nosso equipamento, inclusive as barracas. Outro ponto negativo deste campo avançado é o fato de não haver água, além da neve ficar relativamente longe. Assim, tivemos também que levar estoque extra de água para o tempo que passaríamos lá em cima.
Este trecho possui cerca de dois quilômetros e meio, com quinhentos metros de desnível, vencidos em quatro horas. Caminhamos bem tranquilamente, sem forçar o ritmo, mas parando pouquíssimas vezes, o que nos fez chegar ao destino em bom estado físico e mental. E contamos mais uma vez com a sorte, pois achamos o refúgio vazio e decidimos nos instalar dentro dele, evitando assim o trabalho de armar as barracas.
Sem perder tempo, organizamos nosso equipamento, abrimos os sacos de dormir e preparamos a janta. Desta vez, nada muito elaborado, já que estávamos carregando o mínimo de peso possível até este ponto. Apesar do chão do refúgio estar em estado bem precário e irregular, e da porta estar empenada, deixando o frio entrar, passamos uma noite agradável, indo dormir às 21h.
Mas o conforto durou pouco. Estávamos programados para acordar às 2h da manhã para nos arrumarmos, tomarmos café e atacarmos o cume à partir das 3h da madrugada. Eis que por volta de uma hora da manhã, ouvimos o som de dezenas de pessoas chegando ao refúgio e invadindo-o de uma forma extremamente desordenada e mal educada. Tratava-se de uma expedição com jovens de uma universidade americana, que estavam atacando o cume desde o acampamento inferior (estavam com uma estrutura faraônica e vários "guias" com eles). Resultado disso: procurando refúgio para se aquecer e descansar, mais de 10 pessoas se amontoaram no pequeno refúgio feito para três pessoas, nos impossibilitando de organizar nosso equipamento, fazer nosso café e nem mesmo nos dando espaço para sentar direito. Foi uma das situações mais revoltantes que já passei numa montanha!
Tivemos que nos concentrar para não nos estressarmos com aquele bando de mal educados, que ainda por cima, deixaram lixo no refúgio (neste caso, fizemos questão de interpelar para que recolhessem tudo). Assim, com hordas de pessoas passando a cada minuto, nos restou esperar, para que, finalmente, às 7h da manhã, iniciássemos nossa jornada ao topo, com nada mais, nada menos, que 4 horas e meia de atraso.
Passo a passo íamos ganhando terreno, mas nitidamente, os três estávamos psicologicamente abalados. João foi o primeiro a ratear e demonstrar que não estava bem. Laura aguentou firmemente e tentou animar o João por um bom tempo. Eu por minha vez, via a situação e ficava preocupado com o horário avançado e com o cansaço de ambos, incapaz de reverter a situação. Ao menos, o dia estava lindo, sem uma única nuvem no céu, e, apesar do frio intenso (por volta dos 15 graus negativos), posso dizer que o clima estava agradável.
Ao chegarmos próximos à barreira dos 5 mil metros, paramos para um breve descanso. O relógio marcava 9:30h da manhã e ainda faltavam cerca de 500 metros verticais até o cume. Neste momento, Laura e João decidiram dar meia volta... Fiquei pensativo por alguns minutos, tentando lutar contra minha enorme vontade de descer com eles e voltar ao conforto, mas já havíamos ralado tanto para chegar até ali... já havíamos vencido tantos contratempos, que me senti compelido à prosseguir.
Prometi ser o mais rápido e cuidadoso possível. Eles desceriam até o refúgio "Dagostini", pouco menos de 400 metros verticais abaixo, onde me esperariam. E com toda energia que me restava, voltei a caminhar, desta vez, em ritmo bem forte. A subida é bastante ingrime em vários pontos, sobretudo até chegar aos 5.180m, onde se encontra a Pirca del Inca, um altar utilizado para cerimônias incas, há mais de 500 anos, e, onde foi encontrado em 1954 o cadáver de uma criança de 8 anos, sacrificada em um destes rituais.
Passado este ponto, vem o único trecho mais técnico de todo o trajeto, no qual deve-se cruzar um glaciar com aproximadamente 200 metros de extensão. Apesar de ser bem simples, pode apresentar gelo compacto e duro, tornando a travessia arriscada, afinal, com um simples escorregão, a pessoa pode "voar" pela parede leste da montanha, parando apenas quase um quilômetro abaixo.
Grande parte das expedições utilizam cordas e parafusos de gelo neste trecho, para segurança. Como Laura e João haviam descido, acabei indo sem estes equipamentos, usando apenas os crampons sob a sola da bota dupla, para ajudar na travessia, feita em cerca de 5 minutos.
Passar pelo glaciar me deu um "gás extra", pois eu sabia que o cume estava próximo, faltando apenas uma última subida mais ingrime, além de uma longa rampa de baixa inclinação até o topo. Além disso, neste ponto, passei por vários integrantes da grande expedição americana, ainda em direção ao cume, em passos lentíssimos...
De fato, poucos minutos depois, lá estava eu, no ponto mais alto do Cerro Plomo, com seus 5.434 metros de altitude, às 13h, totalizando 5 horas e meia de subida. E que cume! A vista de 360° impressiona, pois de um lado, há toda a planície onde fica Santiago do Chile, sendo o outro lado repleto de montanhas belíssimas, incluindo o Aconcágua, maior montanha das Américas com 6.962m de altitude, aparentando uma proximidade impressionante.
Fiquei poucos minutos no cume, o suficiente para tirar algumas fotos, fazer alguns vídeos e contemplar a beleza do local. Por sorte, ainda não havia ninguém por lá e tive o prazer de usufruir do silêncio e paz que só um cume vazio pode conferir.
Iniciei a descida às 13:30h e em uma hora já havia chegado ao Refúgio Dagostini, podendo comemorar vitória junto da Laura e João! Aproveitamos o horário para organizar todos os nossos pertences e descer até Federación, em busca de uma noite mais confortável e em busca de água, que a esta altura já havia acabado!
De fato a noite foi bem tranquila, mas desta vez, dentro da nossa barraca, já que o pequeno refúgio, tão útil a nós três outrora, estava ocupado por um guia local e sua cliente exacerbadamente exausta.
No dia 8 de março acordamos cedo, arrumamos a barraca e descemos em pouco tempo os oito quilômetros até a entrada da trilha. Para nossa sorte, conseguimos uma carona, deste ponto até o resort do Valle Nevado, economizando assim pouco mais de duas horas de caminhada, nos 6,5 quilômetros deste trecho.
Retornamos ao conforto do hostel no mesmo dia, felizes por mais uma aventura no currículo, mas mais felizes ainda por descobrirmos a enorme vocação do João para montanhas em altitude, mesmo sem qualquer aclimatação prévia! Passamos o último dia em passeios culturais e gastronômicos, na certeza de que, mesmo com toda a correria, não poderíamos ter tido viagem melhor do que esta em família! João e Laura: amo muito vocês dois!
Trilha percorrida no Cerro Plomo:
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