Seis anos, nove investidas, 76 chapeletas... E uma nova e belíssima via na face norte do Perdido do Andaraí, Grajaú / RJ!
Desde que me entendo por gente, sou frequentador do Parque Estadual do Grajaú. Afortunadamente, já no início dos anos 90, minha mãe me levava por lá, mas não para passear como as pessoas “normais” o faziam, mas sim, para ter as primeiras lições de uma filosofia de vida chamada “Montanhismo”.
Comecei pelas fáceis vias do campo escola da parte baixa do parque. Muito pouco tempo depois, já estava me aventurando pelo Perdido do Andaraí, seguramente uma das montanhas mais estéticas da cidade, merecidamente chamado de “Pão de Açúcar da zona norte”. Por volta de 1996 (com meus longínquos 14 anos de idade), subi esta montanha pela primeira vez, de kichute, guiando a via “Pepe Legal” (ou “DGM”). Foi paixão à primeira vista! Na sequência, fui repetindo algumas das vias clássicas da parede, mas confesso que achava estranho um trecho tão extenso, contar com tão poucas linhas.
O tempo passou, outros projetos vieram e o Grajaú ficou “adormecido”. Mas em 2012, essa história mudaria. Em 2009, o Centro Excursionista Rio de Janeiro (CERJ) completava 70 anos de existência, e, para homenagem ao feito, o Julio Mello, guia do clube, decidiu conquistar uma via no Perdido do Andaraí, à esquerda do “Paredão CEB 60” (conquistado em 1979 por Mário Arnaud e Maurício Mota), com a intenção de nomeá-la “CERJ 70”. A conquista de fato foi iniciada naquele ano, mas acabou levando mais tempo do que o previsto para ser finalizada. Eis que em 2012, a convite do Júlio, formamos parceria para fechar a conquista, fato consumado por nós dois em 17/03/2012.
A “CERJ 70” (D3 5º VIIa E2/E3) é uma via espetacular, com 355 metros e, em sua maior parte, bem vertical, com lances delicados e exposição relativamente alta. Ou seja, diversão garantida! Mas durante a conquista, voltei minhas atenções novamente para o setor à direita da parede, no qual, na época, existiam apenas mais algumas poucas vias: a “CEB 60”, a “Rio Eco 92”, a clássica “Face Norte” (via de 1978, do André Ilha e amigos) e a “Edmundo Braga”.
Não tardou muito para que eu voltasse ao lugar, na intenção de explorar as linhas virgens da parede. Em setembro de 2012, retornei para repetir a “Face Norte” e, involuntariamente, conquistei uma variante em seu início, fazendo uma saída reta desde a base, chegando na oposição inicial da via sem passar pela longa horizontal. Acabou sendo uma variante (“Vr. Fantasma” – V E3 – 25m) bem delicada e exposta, protegida já no final com um friend médio, mas que reacendeu a vontade de conquistar por lá.
Ainda em setembro de 2012, voltei com a Maria Fernanda Patricio e iniciamos uma via bem à direita da “Edmundo Braga”. Ela seria terminada em 05/01/2013, sendo nomeada de “Grampenstein” (D1 3° IV sup E2 – 205m), por possuir tudo que é tipo de proteção: grampos, chapeletas e passadas em móvel!
Na sequência, voltei mais duas vezes à parede, iniciando mais uma bonita via. Apesar da intenção de finalizá-la em solitário, a terceira investida também contou com a Maria Fernanda, pois as enfiadas finais se mostraram bem complexas para serem vencidas sem uma segurança mais efetiva. Nasceu assim a via “João Pedro Vergnano” (D2 4º VIIa E1/E2 – 250m), conquistada em homenagem ao meu filho, ainda em fevereiro de 2013.
A ideia de abrir uma via nesta parede completamente sozinho, ainda não havia passado. Então, encontrei uma belíssima linha entre a “Face Norte” e a “Edmundo Braga” e por três finais de semana seguidos, fiz investidas duríssimas, mas muito prazerosas. Escalar sozinho possui suas complexidades e demanda uma análise de risco enorme. Avaliar qual lance pode ser "solado", qual demanda auto-segurança, qual tipo de segurança fazer... além de ser necessário subir e descer várias vezes, para montar e desmontar o sistema. Isso tudo, carregado de material para a conquista, além de estar em terreno completamente desconhecido.
Por fim, em 04/05/2013, estava pronta a “Som do Silêncio” (D2 5º VIsup E2 – 310m), que seria, talvez, a via mais bonita que eu já havia conquistado. Não apenas por toda satisfação na forma como a conquista foi feita, mas porque absolutamente TODOS os lances da via são gostosos, com agarras, buracos, leves negativos, aderência... enfim, uma via completa!
Em 2013, eu ainda abriria mais uma via, em companhia da Michelle Baldini e do Fernando “Velho” Fajardo, à esquerda da “Som do Silêncio”, sendo praticamente uma variante longa, mas muito interessante: a “Lá Vem o Sol” (D1 4º IVsup E2 – 130m).
Depois disso, ainda haveria mais uma visita ao local, com a Maria Fernanda, em 15/11/2014. Era um dia chuvoso, que seria basicamente para explorar a região. A parede, desde o início da trilha, estava completamente molhada e criando um enorme desânimo. Mas persistimos em costear a rocha, chegando a uma porção de pedra seca!
Não conseguia crer nos meus olhos, mas ao estudar melhor a geologia da área, percebi que o motivo era simples: a parede acima era levemente negativa, conferindo proteção à parte inferior. Bom, era o que tínhamos para o dia, e lá fomos nós iniciar mais uma conquista. Mal sabia eu o que estamos começando a criar... Neste dia, foram conquistados apenas os primeiros 15 metros de parede, pois os lances eram MUITO complicados e o horário já estava avançado. Depois de batermos 5 grampos de ½ em aço inox, descemos e demos o dia por encerrado. Este projeto ficaria no forno por anos....
Como costumo dizer, o PE do Grajaú é uma caixinha de surpresas. Em 2019, acabei conquistando uma via no Contraforte do Perdido do Andaraí, a “Enzima Desnaturada” (IVsup E1 – 50m), em companhia da Laura Petroni, e duas na face leste do próprio Perdido, em um novo setor carinhosamente apelidado de “Setor dos Enfermos”, a caminho do contraforte, sendo elas a “Epicondilite” (IIIsup E1 – 20m) e a “Síndrome do Túnel do Carpo” (IV E1 – 22m), em companhia da Laura e da Jana Menezes.
Ainda em 2019, mais precisamente no dia 26 de outubro, em um dia sem muito planejamento, resolvi dar uma explorada pelo PE do Grajaú, com Laura e meu filho João Pedro. Curiosamente, o dia estava chuvoso e a parede, molhada. Foi quando me lembrei do projeto parado há quase 6 anos e decidimos ir dar uma averiguada. Dito e feito: parede seca nesta parte! Não perdi tempo, coloquei o equipamento e, na segurança da Laura, comecei a subir os lances conquistados anteriormente. Mas desta vez, tive o enorme trabalho de trocar todas as proteções anteriores (grampos de inox), hoje em dia, sabidamente condenados, por chapeletas PinGo (rapeláveis). Isso por si só, já demandou bastante tempo e esforço. Mas empolgado que eu estava, decidi prosseguir por mais alguns metros.
A enfiada inicial é o crux da via. Indiscutivelmente. Portanto, vencer aqueles 30 metros foi uma tarefa hercúlea. Após umas 2 horas, eu estava exausto, mas muito feliz, pois após vencer a sessão negativa, cheguei a um ótimo platô, onde estabeleci a primeira parada da via. O cansaço era tamanho, que dei os trabalhos por encerrados.
Dois finais de semana depois, lá estávamos nós três novamente, no dia 09/11. O foco seria “liberar” alguns poucos lances que haviam sido feitos com pontos de apoio artificial, durante a conquista da primeira enfiada, além de tentar progredir um pouco mais. Desta vez, escalando leve e com os movimentos já trabalhados, fui encaixando movimento após movimento, metro após metro e com muito esforço, cheguei à P1, exausto – confesso – mas com a primeira enfiada efetivamente realizada em livre! Ufa.... precisamos de confirmação, mas, a meu ver, trata-se de uma bonita sequência de 8ºa, ora em boas agarras, ora em regletes minúsculos, sempre com uma verticalidade enorme, quando não, em lances levemente negativos.
Este dia ainda foi útil para vencer a segunda enfiada. Após o platô da P1, os lances ficam menos complexos, saindo em uma passada um pouco mais delicada de quinto grau, evoluindo para alguns buracos impressionantes, mas em lances de 4º grau, até chegar à P2, apenas 25 metros acima, em um platô perfeito. A visão foi animadora e desanimadora ao mesmo tempo, pois após virar a barriga inicial da parede, chegando à P2, tem-se uma visão perfeita da porção superior da montanha. Bom, pois poderíamos traçar estratégias para a conquista. Ruim, porque vimos que após um curto trecho menos vertical, a parede continuava com lances aparentemente complexos e com várias barrigas a serem vencidas...
A quarta investida foi feita apenas com Laura. O interessante deste dia 20/11/2019 foi o fato de ter sido usado não apenas para dar prosseguimento à conquista, mas também, para fazer a Laura treinar artificial fixo, na primeira enfiada da via. Infelizmente os lances são demasiados pesados e fazer tudo em livre a cada investida representaria um esforço brutal, sobretudo, com todo equipamento que ainda precisávamos içar. Portanto, a ascensão em A0 (parte em escalada, parte com apoios artificias) foi a melhor escolha.
Com a alocação de tempo para a “aula”, acabamos ficando com o tempo mais curto, entretanto, foi o suficiente para iniciar a terceira enfiada, que começa em lances mais simples, de até 4º grau, até voltar à parede extremamente vertical. Nesta parte, a via se assemelha MUITO com a “Via dos Italianos”, no Pão de Açúcar. Parede vertical, boas agarras e rocha de boa aderência. Realmente incrível a semelhança!
No dia 14/12/2019, eu e Laura fomos para a quinta investida, na qual subimos até o ponto alcançado na investida anterior e fechamos a terceira enfiada, com 55 metros, após passar por lances bem delicados e chegarmos em um grande buraco, o qual conferiu bastante conforto à P3. Neste mesmo dia, segui conquistando, subindo mais 30 metros em terreno vertical e ainda, muito delicado, em lances de 5º e 6º grau. Neste ponto, o corpo já estava moído e resolvemos retornar.
Já no apagar das luzes de 2019, no dia 21/12, eu, Laura e João Pedro fizemos uma investida (a sexta) relâmpago, na qual, o único objetivo seria de fixar uma corda nas duas primeiras enfiadas da via, facilitando assim os próximos ataques.
Após as festividades de final de ano, no dia 26/01/2020, eu e Laura fomos para a sétima investida, na qual fomos surpreendidos pelo forte calor que fazia. Mesmo assim, subimos até P3 arrastando todo o equipamento e conquistei a metade superior da quarta enfiada, estabelecendo a P4 em um bom platô, após passar por lances de enorme verticalidade e alto grau técnico, sempre muito constantes. Mais uma visão desanimadora: duas grandes barrigas saíam do platô da P4, indicando que estes lances também seriam complicados de conquistar.
Uma semana depois, voltamos na intenção de realizar mais uma investida, entretanto, o calor estava tão surreal, que abortamos a missão e fomos “apenas” fazer a “Face Norte”. A ideia não poderia ter sido melhor: Na parte superior da Face Norte, é possível ter uma ótima visão da linha que estávamos conquistando, assim, pudemos estudar de longe o que faltava e o caminho que tomaríamos. Mais: percebemos que, vindo do cume, era possível rapelar pela “Mentirosos e Manipuladores” (D2 5º VIIb E2/E3 – 255m) - via de 2013 do Júlio Mello, exatamente à direita da nossa conquista -, chegando exatamente à P4.
Após o reconhecimento da parede na investida anterior, optamos por fazer uma abordagem vinda do cume, subindo pela trilha e rapelando pela “Mentirosos e Manipuladores”, chegando assim na quarta parada da nossa conquista, via com bastante tempo hábil e pouca energia desperdiçada. A nona investida (contando o reconhecimento feito pela “Face Norte”) foi feita no dia 14/03/2020, que estava relativamente nublado e com um vento agradável, o que nos deu maior autonomia também.
Os 60 metros seguintes foram bastante complexos, pelo qual optei por dividi-los em duas enfiadas mais curtas, evitando assim o arrasto de corda em lances de alta complexidade. Em poucas horas, já tínhamos vencido as últimas barrigas da via e estabelecido as P5 e P6. E o melhor de tudo: já era possível ver o cume bem próximo, com lances aparentemente tranquilos!
Apesar do enorme cansaço que sentíamos, esta visão nos fez ganhar moral e decidimos continuar. Voltar para outra investida, apenas para conquistar estes metros finais não seria uma opção. Saí de P6 determinado e confesso que nem senti os lances passando. Todos na casa do 3º e talvez alguma ou outra passada em 4º grau. Cheguei a esticar 30 metros sem proteger nada, tamanha a vontade de fechar a via (no rapel, fiz questão de intermediar todos os lances mais expostos).
Exatos 60 metros após sair da P6, encontrei com o último grampo da via “Rio Eco 92”, ainda em bom estado. Sem pestanejar, estabeleci a P7 nele, dando a conquista por encerrada!!!
Infelizmente, neste dia, o cume contava com a presença de pessoas duvidosas, o que me deixou temeroso sobre uma possível comemoração no cume com a Laura. Assim sendo, montamos rapel e rapidamente nos afastamos da situação.
A descida foi rápida, mas muito sofrida. Estávamos há mais de 6 horas em atividade, o calor já estava absurdo, o horário avançado e as barrigas, roncando. Na parte final do rapel, ainda houve a movimentação para retirada da corda fixa. A trilha de retorno à entrada do parque, que leva cerca de 10 minutos, pareceu uma eternidade!
Ao longo destes 6 anos, foram ao todo nove investidas (contando o reconhecimento feito ao escalar a Face Norte), sendo as últimas oito, concentradas ao longo de 5 meses, para que os 305 metros de parede fossem finalmente vencidos, sendo utilizadas nada mais, nada menos que 76 chapeletas! Mas, enfim, a conquista estava terminada. Seguramente, uma das mais bonitas que já abri, não apenas pela dificuldade, mas principalmente, pela indiscutível beleza em praticamente TODOS os lances ao longo da linha.
O nome da via não poderia ter sido diferente: “Paredão Quarentena”, graduado em D3 6º VIIIa E1 – 305m (a confirmar). A conquista foi finalizada exatamente um dia antes do Parque Estadual do Grajaú ser fechado por conta da pandemia do novo Corona vírus, exatamente quando eu e Laura iniciamos nossa quarentena, tão necessária para mitigarmos os problemas globais enfrentados atualmente. Infelizmente, teremos que esperar para termos a primeira repetição da via...
Agradecimentos à Maria Fernanda, com quem a conquista foi iniciada – de fato, não fazíamos ideia do que ela viraria! Agradecimentos com carinho ao João Pedro, por toda garra nas três investidas que participou, ora pegando chuva, ora pegando forte sol na cabeça! E agradecimentos especiais à Laurinha, que por oito investidas sofreu de forma impressionante (rs...), mas sempre mantendo o alto astral e a incrível parceria para que o projeto tivesse sucesso!
Repeti essa via em 22/11/2020 com o Reginaldo Honorato. Precisa ter cuidado que ela é bem quebradiça, do começo ao fim.